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sexta-feira, abril 19, 2024

A fronteira em três dimensões

Por Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

Em termos planetários, acentuam-se as assimetrias nacionais, regionais ou internacionais. Por toda parte aprofunda-se o fosso dos desequilíbrios socioeconômicos. O pico da pirâmide social distancia-se cada vez mais da base. A globalização da economia traz embutida a concentração de renda e riqueza, por um lado, e a exclusão social, por outro. Ao mesmo tempo que uma minoria privilegiada beneficia-se dos bens da técnica, do progresso e do crescimento, aumentam em proporção inversa a pobreza, a miséria e a fome. E, concluindo o efeito dominó, aumenta igualmente a busca de alternativas através das migrações de massa.

Tais deslocamentos, porém, logo descobrem que “no meio do caminho tinha uma pedra”, para usar a expressão do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Não uma, mas muitas pedras! Uma em cada fronteira, ou melhor, em cada dimensão da fronteira. Na fronteira geográfica, territorial, marítima ou física, tropeçam com a vigilância da polícia federal e do serviço aduaneiro. Na fronteira jurídico-política, são as leis da política migratória que lhes barram o caminho. Na fronteira cultural-religiosa, deparam-se com a discriminação e a hostilidade, a intransigência e a xenofobia.

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Muitos conseguem cruzar a fronteira geográfica, apesar dos muros que se multiplicam. Mas, em falta dos documentos necessários, não podem ir além disso. Permanecem no país de chegada na condição de irregulares ou “clandestinos”, com tudo que isso significa para a sobrevivência imediata e o futuro. Outros, com a documentação em dia, conseguem cruzar a fronteira geográfica e política. Cedo, porém, se dão conta da dificuldade de adaptação, sentindo-se estrangeiros e estranhos no lugar de destino. Outros, ainda, após ter cruzando as três dimensões da fronteira – física, política e cultural – experimentam o preconceito e não raro o racismo puro e simples. Fecha-se a oportunidade da cidadania.

Disso resulta que a intolerância – ideológica, religiosa ou cultural – constitui a fronteira mais difícil de ultrapassar. Uma fronteira que está na mente, no coração e na cultura de não poucas pessoas, setores e nações inteiras. Muro divisório que carregamos dentro de nós, seja enquanto habitantes dos lugares de acolhida, seja inclusive enquanto migrantes. É uma barreira que, em maior ou menor grau, faz parte da própria condição humana. Fronteira que é construída não com blocos de cimento, soldados armados ou arame farpado, mas costurada através de distintas línguas e ideias, diferentes costumes e modos de interpretar o mundo e a história.

Muro invisível e, por isso mesmo, mais difícil de superar. Aqui os grupos extremistas costumam apelar para o conceito de raça ou de nacionalismo, a fim de rechaçar qualquer aproximação. Basta pensar no avanço do neofascismo e do nacionalismo populista de direita em diversas partes do mundo.

Na Marcha dos Imigrantes 2015, em São Paulo, grupo levou cerca que simbolizou as fronteiras a serem superadas pelo mundo.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

Trata-se da fronteira entre os de “dentro” e os de “fora”, “nós” e “eles”, “conhecidos” e “desconhecidos” “nacionais” e “estrangeiros”. Pior ainda quando essa divisão vem temperada e reforçada com a cor da pele ou com uma espécie de moralismo excludente, de corte ético-religioso e maniqueísta, tipo “bons” e “maus”. É então que os muros substituem as pontes, o desencontro toma o lugar do encontro, o intercâmbio acaba sendo abortado antes de nascer, as portas se fecham uma a uma, o isolamento degenera em comportamento hostil… Dá-se origem e amplo espaço à “cultura da indiferença”, na expressão do Papa Francisco.

Na contramão da globalização política e econômica, verifica-se uma restrição crescente às vias legais de migração. Fechada a porta da frente, os migrantes forçam a porta dos fundos. Ou seja, pressionam em massa sobre a fronteira física, geográfica, territorial ou marítima. Disso decorre não só um aumento das migrações ditas irregulares, mas também uma maior visibilidade dos fluxos migratórios. O desafio está em gerir tais deslocamentos de forma, digamos, humanitária. Gestão que deve levar em conta os países de origem, de trânsito e de destino. Desnecessário  insistir que semelhante gestão passa, necessariamente, pelo combate à desigualdade socioeconômica, pela defesa dos direitos humanos, pela criação de postos de trabalho e, no fim da linha, por uma distribuição de renda mais justa e equitativa. As assimetrias que dividem países, regiões e o planeta como um todo, mescladas e acrescidas pela violência e pela guerra, encontram-se na raiz dos movimentos forçados de milhões e milhões de pessoas.

Roma, 18 de fevereiro de 2018

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