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sexta-feira, abril 19, 2024

A marca da guerra

Por Maristela Schmidt*
Em São Paulo (SP)

Estava na periferia de São Paulo. Foi a primeira vez que a vi. Andava com um sorriso no rosto pela rua agitada. Era dia de feira. O carro passava pelas vielas apertadas, disputando um espaço com os moradores.

Sua amiga me pediu para visitá-la. Não fazia muito tempo que tinha se mudado para o bairro. Quando a encontramos, abraçou-me forte como se tivéssemos nos conhecido há muito tempo. Convidou-me para ir até sua casa. Morava com a filha mais velha em um cômodo. No quintal apertado, entramos em uma das portas. Um lençol separava a cama da cozinha. A televisão no alto da parede era sua distração.

Falava português com uma mistura de francês e Lingala, um dos inúmeros idiomas falados na República Democrática do Congo.

Contou-me que estava em busca de um emprego. Era comerciante em seu país. A situação estava difícil e somente a filha trabalhava. O salário não cobria todas as despesas da casa. Pediu para que eu a ajudasse na busca de vagas. Tinha interesse em ter uma barraca na feira, mas havia muita burocracia. Ser ambulante não era uma opção por ter medo dos policiais.

Mas o outro pedido me chamou a atenção. Gostaria de fazer uma cirurgia plástica. Não entendi no primeiro momento o porquê daquele pedido inusitado. Levantou a blusa e mostrou uma cicatriz profunda em sua barriga. Não queria mais aquela marca em seu corpo. Era a lembrança das atrocidades de uma guerra. Tirá-la era uma tentativa de apagar dias terríveis, inundados em dor e sofrimento.

Congoleses no Rio organizam ato por paz e democracia no país natal (nov.2016).
Crédito: Divulgação

Com a voz alta e forte, contou-me que estava em sua casa quando um grupo armado chegou. Era mais um dos inúmeros ataques à população civil. Saques, estupros em massa, sequestros, recrutamento de crianças-soldados e matanças fazem parte do cotidiano de milhões de congoleses. São 20 anos de guerra em dos países mais ricos do mundo em recursos naturais e também um dos mais biodiversificados, abrigando a segunda maior floresta equatorial do mundo.

Devastaram sua aldeia e destruíram sua família. Viu seu um único menino morrer. Pediu para as meninas se esconderem de baixo da cama. Com a filha mais velha, foi sequestrada. Levaram-nas para a floresta. Durante 3 meses, passou os dias sendo mulher, como me confidenciou.

Milícias e membros das Forças Armadas do país usam a violência sexual como arma de guerra. São estupradas e contaminadas por doenças. Abandonadas pelos maridos. Rejeitadas pela família. São vítimas sem valor nenhum perante à sociedade.

Ao tentar escapar, correu muito, mas um tiro a acertou. Acordou no hospital da organização de ajuda humanitária Médicos Sem Fronteiras. Não se lembrava como tinha parado lá. Quando abriu os olhos, sua filha estava ao seu lado. O tiro era a marca que gostaria de esquecer.

Não podia retornar a sua casa. Não tinha notícias das filhas menores. Não sabia se as meninas conseguiram sobreviver. Acordava todos os dias pensando onde estariam e rezava para que tivessem vivas e salvas. Seu sonho era um dia encontrá-las.

O Brasil só foi um país de passagem. A ideia era juntar dinheiro para migrar novamente. A França era seu lugar. Tinha alguns familiares esperando sua chegada. Não tardou para que ela fosse buscar refúgio próximo aos seus parentes.

O sorriso continua em suas fotos. As filhas ainda não foram encontradas. A mais velha migrou junto com a mãe e hoje é uma mulher casada.

*Maristela Telles Schmidt, advogada com especialização em andamento em Direito Internacional pela PUC/SP, atuou durante 2 anos no atendimento jurídico da Missão Paz, com foco em regularização migratória e assuntos gerais do direito. Atua como voluntária em projetos para solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil e no exterior. Esteve na Palestina e no Líbano em 2015 e 2017, respectivamente, onde trabalhou em projetos educacionais com crianças e famílias refugiadas

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