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sexta-feira, abril 19, 2024

Crônicas de um Natal entre sete nacionalidades – ou quando aprendi a dizer ‘figo’ em curdo

Todos ali tinham histórias fortíssimas – e belíssimas – de migração. A rota de cada migrante é pessoal e intransferível

Por Victória Brotto
Em Estrasburgo (França)

Nós éramos em sete nacionalidades ao redor da mesa na hora do almoço do dia 25. Portugal, Angola, Curdistão, Brasil, França, Itália e Senegal. “Temos quantos países aqui?”, perguntou Antônio, francês, nascido em Angola, e ‘crescido’ em Portugal. Ele se levanta, começa a contar e olhar para cada um na mesa, enquanto todos caem na risada. “Um mundo inteiro ao redor da mesa!”, digo. Antônio abre as duas mãos para contar: “Sete!”.

Todos ficam maravilhados. “Isso que é uma mesa global”, diz sua esposa, Isabelle, francesa.

Cada um de nós carregava no rosto um outro país, uma outra gente que não era a minha. Quantas vivências diferentes! Shang e Mohamed, curdos, me mostram o quintal da casa da mãe de Mohamed. “Ao redor desse quintal é cheio de uvas e figos! Você está vendo isso aqui, são figos! Não para de dar. Muito, muito!”, me diz Mohamed, com os olhos brilhando. Shang me pergunta: “É ‘fig’ mesmo em inglês?”. “Não lembro, mas eu sei o que é, em português dizemos “figo”, respondo, impressionada com as similaridades entre curdo e português.

” As fronteiras, infelizmente, ainda são de aço, o que faz de cada pessoa que as cruza um revolucionário”.
Crédito: Victória Brotto

Quão próximos estávamos um dos outros, em risos, em conversas, em silêncios e em perguntas. A maioria ali tinha nascido em outro país, mas, antes de sermos estrangeiros e de tropeçarmos no francês, no inglês, no curdo, no português, éramos gente. “Is this….pomme? Yes, it is pomme? Pomme est quai? Apple?”, diz Isabelle, francesa, se aventurando no inglês para falar com Shang. Do outro lado da mesa, Rafael, seu filho do meio, cai na risada. “Mãe, não dá. A senhora no inglês…”, diz ele ficando vermelho de tanto rir. E do outro lado, a mãe rindo mais ainda. “Pare, Rafael, a gente tenta né?”, e os dois riam ainda mais.

A ceia foi passando e eu a pensar na minha gente no Brasil e, ao mesmo tempo, a olhar a minha gente aqui, na França. Minha amada família faz uma imensa falta, especialmente no Natal, mas como fora engraçado olhar para todos ali, me rodeando em conversas, em trocas , tão grandes amigos e companheiros de jornada e pensar que eles nasceram e viveram vidas muito diferentes da minha.

Meus amigos nascidos no Curdistão, por exemplo, nunca ouviram a voz de minha mãe, ou, os meus amigos da França não sabiam o quão prazeroso é caminhar pela Avenida Paulista num domingo à tarde. Ou o quão gostoso é ir numa padaria com sua mãe e irmã e tomar um café com suco de laranja e pão de queijo – inclusive até o pronunciar “pão de queijo” lhes seria completamente estranho.

Meus amigos ali, do meu lado, ao redor da mesa a compartilhar o Natal comigo não fazem ideia que a Linha Vermelha, no metrô de São Paulo, às 18h é uma cilada. Muitos também não fazem ideia que “Noel”, em português, é “Natal”.

Diferentes nacionalidades e vivências, mas unidos por outros pontos em comum.
Crédito: Victória Brotto

Rafael ensinou algumas palavrinhas em português para o seu filho pequeno, Samuel. “Como é bom dia, filho? Fale para Victória o que você sabe”, diz ele para um menininho sorridente, com quase 3 anos, a segurar um mini carrinho de polícia. Samuel me olha envergonhado: “Bom dia!”. E todos riem carinhosamente. Eu dou os parabéns para o pequeno desbravador da língua de Cabral. Um simples ‘Bom dia’ numa língua que me vem tão fácil vira meu coração do avesso, em saudades de um Brasil distante e de um português tão belo, tão doce.

Há quase seis meses me mudei para Estrasburgo, na França – mas já se vai quase um ano que deixei o Brasil. Aprendi o que é migrar: não é um ato em si, somente, de levantar e ir embora, de caminhar, de sair, de chegar. Migrar é um profundo ato humano, um dos mais profundos verbos que colocam a humanidade em estado de reflexão.

Não é fácil migrar; todos ali, na mesa de Natal, tinham histórias fortíssimas – e belíssimas – de migração. A rota de cada migrante é pessoal e intransferível. As fronteiras, infelizmente, ainda são de aço, o que faz de cada pessoa que as cruza um revolucionário. As culturas e a geopolítica se mostram muitas vezes impenetráveis. Mas poucas coisas são mais belas do que se sentar numa mesa de Natal, com pessoas que nasceram há milhares de quilômetros de você, e se sentir profundamente em casa. E todos sorriam…

“Aprendi o que é migrar: não é um ato em si, somente, de levantar e ir embora, de caminhar, de sair, de chegar”.
Crédito: Victória Brotto
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