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quinta-feira, abril 25, 2024

Exclusão como política: a reforma do sistema de asilo na Hungria

Governo húngaro investe milhões de euros em campanhas na mídia que buscam estigmatizar migrantes, requerentes de asilo e refugiados

Por Mara Tissera Luna*
Tradução para o português por Gabriela Castro
Leia versão em espanhol

Desde 2015 o governo da Hungria empreendeu uma reforma dramática do sistema de asilo que resultou em seu virtual desmantelamento. Esta reforma só pode ser compreendida no contexto de uma das transformações sócio-políticas mais radicais que a Europa assistiu nos últimos anos: a instalação progressiva, desde 2010, de um governo de regime autoritário o país por parte do primeiro-ministro Viktor Orbán.

Os especialistas descrevem esse sistema como um “regime híbrido”; embora em teoria as instituições democráticas continuem a existir, na prática, o executivo limita continuamente a independência dos diferentes poderes e agências do Estado e a liberdade de ação dos atores da sociedade civil.

Muitos especialistas húngaros concordam que no contexto da crise humanitária do “longo verão da migração” na Europa em 2015, a elite dominante encontrou uma oportunidade política sem precedentes no tema da migração para continuar seu projeto autoritário. Em particular, legitimar-se como “defensor do povo húngaro” contra o avanço dos supostos “invasores” estrangeiros e desviar a atenção de sérios problemas de política pública (como corrupção sistêmica).

Entre agosto de 2015 e julho de 2018, o governo fez uma série de emendas constitucionais, alterou as leis que regem a migração, os procedimentos para solicitar proteção internacional e controle de fronteiras e declarou um “estado de emergência causado pela imigração” (atual até hoje). O especialista húngaro Boldizsar Nágy sintetizou essa transformação da estrutura institucional com os termos de “negação”, “dissuasão”, “obstrução” e “punição”, e permitiu ao governo:

  • Negar que as pessoas que solicitam proteção internacional precisassem dela, classificando-as como “migrantes” ou “migrantes econômicos”;
  • Bloquear o acesso ao território húngaro através da construção de uma cerca de arame farpado e aumentar a vigilância policial nas fronteiras com a Sérvia;
  • Desencorajar refugiados a solicitar proteção internacional, tornando o procedimento para determinar o status de refugiado mais complexo e negando aos requerentes o direito à liberdade e ao respeito pelas garantias processuais;
  • Criminalizar aqueles que conseguiram entrar na Hungria, expulsando-os para a Sérvia.

Como resultado da nova estrutura institucional, as pessoas que tentaram acessar o procedimento para determinar o status de refugiado na Hungria se tornaram vítimas de:

  • Expulsões coletivas da Hungria para a Sérvia. Estima-se que, em julho de 2016, 40.000 pessoas tenham sido expulsas da Hungria pelas forças policiais, inclusive através do uso de violência;
  • Longos períodos de espera em condições deploráveis nas “áreas de pré-trânsito” enquanto aguardam a entrada no território húngaro, entre agosto de 2015 e setembro de 2016;
  • Detenções arbitrárias por períodos indeterminados nas chamadas “zonas de trânsito” (reconhecidas como centros de detenção pela ONU) entre março de 2017 e maio de 2020. Mesmo grupos vulneráveis ou com necessidades especiais, como crianças, mulheres grávidas e pessoas com doenças crônicas, foram detidas nesses centros.

Além disso, as condições de integração na Hungria para refugiados reconhecidos e beneficiários de proteção subsidiária são muito menos favoráveis do que em outros países da União Europeia.

Desde 2013, o governo eliminou gradualmente todos os serviços e programas de integração, e as ONGs são as únicas que gerenciam os poucos que existem no país.

Para legitimar a importância dessas reformas, desde 2015 o governo investe milhões de euros em campanhas na mídia que buscam estigmatizar migrantes, requerentes de asilo e refugiados (principalmente muçulmanos); estigmatizam as ONGs que os ajudam “Inimigos públicos” que “defendem interesses políticos estrangeiros”; e acusam o magnata e filantropo húngaro-americano George Soros e a União Europeia de promover a migração para a Europa, recorrendo a teorias da conspiração.

A proteção dos direitos humanos dos migrantes e refugiados também foi afetada pela campanha política e da mídia com a qual, desde 2013, o governo demonizou as organizações não-governamentais de direitos humanos, bem como a promulgação de duas leis que impedem seu trabalho e são válidos até hoje:

  • A lei de “Transparência de ONGs do exterior” de 2017, exigia que qualquer ONG que recebesse mais de € 24.000 de doadores estrangeiros fosse registrada como uma “organização de financiamento estrangeiro” em seus sites e publicações;
  • O pacote de leis chamado “Stop Soros”, paradoxalmente aprovado no dia do refugiado de 2018, que criminaliza as atividades de organizações não-governamentais as atividades de organizações não-governamentais que defendem requerentes de asilo, refugiados e migrantes.

Durante a crise do Covid-19, e mesmo antes da aplicação das medidas de distanciamento social, o governo fechou o acesso dos solicitantes de asilo a partir da Sérvia aos centros de detenção onde poderiam solicitá-lo, e aumentou o número de tropas que vigiam a fronteira. Isso sob o argumento de que “existe uma conexão entre o coronavírus e a imigração irregular”

Desde maio, acontece uma nova onda de transformações no sistema de asilo. No caso de duas famílias — uma afegã e outra iraniana — detidas nas chamadas “zonas de trânsito”, o Tribunal de Justiça da União Europeia estabeleceu que a detenção automática e por tempo indeterminado equivale a uma detenção arbitrária e a uma privação da liberdade. Para implementar essa sentença, o governo húngaro fechou esses centros de detenção e liberou as cerca de 280 pessoas que lá se encontravam (incluindo famílias com crianças) para centros abertos de recepção.

Ao mesmo tempo, por meio do Decreto Governamental 233/2020 (V.26), o governo húngaro estabeleceu novas regras que fazem com que solicitar asilo no país seja quase impossível, e que estarão vigentes até o final de 2020. Segundo o novo regulamento, entre outros pontos, os solicitantes de asilo que se encontram fora do território húngaro podem presentar uma “declaração de intenção” em duas embaixadas húngaras (na Ucrânia e na Sérvia), que podem prover uma permissão de entrada na Hungria para solicitação de asilo.


Mara Tissera Luna vive na Hungria desde 2015, onde estudou Administração Pública na School of Public Policy da Central European University (www.maratisseraluna.com, twitter: @maratisseraluna).

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