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quinta-feira, abril 18, 2024

O poder da cultura: migrações como oportunidade intercultural

Junto com o empenho por uma migração segura, cabe reconhecer que a mobilidade humana é fator de desenvolvimento e de transformação, em todas as dimensões do humano

Por Carmem Lussi
Do CSEM (Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios)

Max Frisch, referindo-se à imigração de italianos à Suíça, afirmou: “queríamos braços, chegaram pessoas”. Décadas mais tarde, os países continuam tratando as migrações internacionais como problema contingente, as políticas ainda balbuciam respostas aos desafios da mobilidade humana e as comunidades multiplicam ações e reações tentando aprender a conviver com as novidades, os aportes e as transformações que as migrações fazem acontecer. Os deslocamentos populacionais incidem sobre os locais onde as pessoas partem ou passam, e especialmente onde chegam, seja naqueles em que fazem uma pausa em suas trajetórias, seja nos que escolhem para construir suas moradas.

Os movimentos migratórios marcam as sociedades, para além das situações emergenciais, que não cessam e que precisam de devida e responsável atenção com intenção de ações e efeitos a médio e longo prazo. O mundo aguarda com expectativa que tenha êxito o esforço a nível das Nações Unidas, onde se trabalha por um Pacto Global sobre Migrações, previsto para ser votado na Assembleia Geral da ONU em 2018. Entretanto, junto com o empenho por uma migração segura, cabe reconhecer que a mobilidade humana é fator de desenvolvimento e de transformação, em todas as dimensões do humano.

Festa do Imigrante reúne milhares de pessoas anualmente no espaço da antiga Hospedaria do Brás.
Crédito: Divulgação

Um dos aportes com os quais migrantes e refugiados contribuem de modo importante para o desenvolvimento e o enriquecimento dos povos é a cultura, nas suas diferentes formas e expressões. A cultura é também um canal particularmente favorável para a integração e a convivência intercultural em contextos nos quais as diversidades culturais muitas vezes são consideradas fatores de ameaça à qualidade de vida, à convivência e à paz. A cultura tem “poder [de] transformar vidas e contribuir para a inclusão e para a coesão social, promovendo o conhecimento, o diálogo, a tolerância e o respeito” .

O poder da cultura é um “poder de criar espaços de encontro, espaços livres, abertos e não ameaçadores, que promovem o conhecimento, que dão a conhecer o “Outro” e a sua humanidade, que ajudam a criar laços…” . Nesse sentido, a campanha da Caritas Internacional COMPARTILHE A VIAGEM vem a ressaltar exatamente um aspecto fundamental do fenômeno migratório, esquecido especialmente pela grande mídia: o desafio da chegada de pessoas de outras culturas e mentalidades, portadoras de outros valores e não raramente também de outras religiões, como uma oportunidade de convivência, de novas relações interpessoais e de encontro.

A arte, a cultura dos povos, a dança e a gastronomia, as cores e os ritmos que as migrações fazem encontrar, partilhar e intercambiar podem melhorar a vida de quem migra e, sobretudo, incidir nos contextos de interação com seu poder transformador e mobilizador, favorecendo o encontro e a valorização da alteridade que os migrantes trazem consigo, assim como a emersão, o respeito e o reconhecimento das particularidades e riquezas de todas as diversidades que as comunidades encerram e transmitem, de geração em geração. A cultura pode ser laboratório de interação, de integração e também de superação dos medos e do desconhecimento do ‘Outro’, que está na raiz de toda xenofobia, discriminação, criminalização, culpabilização e rejeição das pessoas e dos grupos humanos diferentes por tradição, fenotipia, cultura, religião ou origem.

Ato na Praça da Sé para o lançamento da Lançamento da campanha mundial “Compartilhe a Viagem”.
Crédito: Miguel Ahumada

Se por um lado “é preciso reconhecer as diferenças, não apenas como fatores que enriquecem as nossas vidas, mas também como fatores que nos separam e criam tensões” , por outro lado, cabe ressaltar que o medo das mudanças culturais pode fazer com que muitos cidadãos que passam por situações de crise financeira optem por apoiar políticas anti-imigração e alimentar discursos e posturas de desprezo e rejeição de imigrantes e refugiados. Nesse sentido, o intercâmbio que as expressões culturais fazem acontecer se torna uma experiência promissora a partir da interculturalidade que se multiplica de baixo, fazendo brecha através dos encontros e das relações em nível micro, e que podem fazer a diferença na construção de sociedades tolerantes e capazes de gerenciar seus desafios internos.

O poder da cultura requer também que os próprios migrantes valorizem sua bagagem cultural, apreciem sua riqueza cultural e descubram as riquezas das culturas e dos atores que encontram em suas trajetórias. “Compartilhar a própria cultura permite àqueles que se refugiaram no país uma aproximação /…/ livre de estereótipos comuns”. Migrantes e refugiados se assumem, assim, como “protagonistas de uma experiência intercultural” que os empodera e que favorece processos transformadores de mentalidade e de valores, promovendo a convivência intercultural.

A arte, especialmente a habilidade de colher, interpretar e enviar ao mundo imagens do que a mobilidade humana vive, sofre e enfrenta, especialmente em algumas cruciais fronteiras entre nações, vem sendo uma estratégia incisiva de advocacy pela vida e pela proteção da dignidade e dos direitos dos povos em fuga. Fotografias e cinema, em especial, vêm atuando com força internacionalmente. Há realidades e ideias que só conseguem ser interpretadas e transmitidas com silêncios e olhares, palavras não conseguem alcançar sua profundidade nem formular seus significados. Também o teatro e a literatura conseguem fazer ecoar e até denunciar, o que o cotidiano e as políticas, a mídia e os preconceitos não dão conta de abarcar em suas falas e reações.

Enquanto os próprios migrantes e refugiados são os protagonistas nos percursos de interação que as artes e a criatividade da sabedoria e da cultura de seus respectivos povos levam para os países de imigração, o desenvolvimento de mentalidade e de valores de acolhida, o reconhecimento da alteridade como riqueza, o respeito da dignidade de quem é portador(a) de alteridades na convivência humana e social está nas mãos, sobretudo, de quem educa as novas gerações, na família e na escola, não menos nos espaços onde a interação é construída por causa do trabalho ou do lazer. A transmissão da cultura entre gerações se dá por processos intrínsecos ao crescimento das pessoas e ao desenvolvimento, mas a promoção da intercultura como modo inclusivo e respeitoso da dignidade e da riqueza de todos e todas é uma decisão que cada sujeito precisa tomar, para poder contribuir, favorável ou desfavoravelmente.

*Editorial da resenha Migrações na Atualidade, edição 109, publicado também no MigraMundo pela parceria com o CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios

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