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sexta-feira, abril 19, 2024

O que as migrações têm a ver com urbanização e sustentabilidade

Não podemos pensar um desenvolvimento sustentável das áreas urbanas sem debater, ao mesmo tempo, o tema das migrações

Por Pe. Alfredo J. Gonçalves

A “Revolução urbana”, título de uma obra do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre, é filha direta da revolução agrícola. Com a domesticação de algumas plantas e animais, a invenção dos meios de irrigação, a descoberta do metal mais perfurador que os objetos de pedra, a invenção da roda, entre outros avanços, o homem passa a dominar o solo cultivável, aumentando assim os níveis de produtividade. Não há mais necessidade de abandonar com tanta frequência o terreno apenas cultivado, para deslocar-se em busca de outro. O caçador, pescador e coletor nômade, aproximadamente 6 milênios antes de nossa era, começa um lento processo de fixação e de sedentarização. A produção supera aquilo que a comunidade é capaz de consumir, tornando-se necessário armazenar o excedente. A armazenagem, por sua vez, requer uma série de serviços ligados a uma estrutura jurídica de segurança, distribuição, administração, etc. Daí a origem dos primeiros povoados, núcleos de futuras cidades, especialmente a partir da Mesopotâmia, no sistema fluvial Tigre-Eufrates. Com o decorrer do tempo, nascem e se multiplicam as cidades-estados, que se espalharão por todo mundo antigo e medieval.

No alvorecer dos tempos modernos, assiste-se então ao longo período de amadurecimento da Revolução Industrial. Diferentes fatores contribuem para isso: o florescimento do comércio em nível mundial, que serve à acumulação de riqueza; descoberta de novas terras para além dos oceanos, o que significa intercâmbio de produtos também novos e exóticos; inventos inéditos e profundas revoluções no campo da filosofia, da ciência, da tecnologia e do conhecimento em geral. Mas é particularmente no século XIX e início do século XX, que toma impulso um grande processo de urbanização. “O ar da cidade torna o homem livre”, dizia um provérbio popular. O êxodo rural adquire proporções jamais imaginadas: os campos esvaziam-se e as cidades incham ao redor das fábricas incipientes. O novo desafio é fazer com que milhões de camponeses se convertam em “soldados da indústria”. Ou seja, em operários “duplamente livres” (conceito marxista): livres dos próprios meios de sobrevivência como servos da gleba, e livres para venderem sua força-de-trabalho na zona urbana. Em outras palavras, o trabalho se converte em uma nova forma de mercadoria.

Na cidade de Manchester, na Grã-Bretanha, considerada o berço da indústria, numa produtividade sem precedentes, supera-se as oficinas artesanais pela produção em massa. Para se ter uma ideia, a cidade passa de 80 mil habitantes no ano de 1801 para 1,5 milhão na metade do século. Igualmente rápido e espetacular será o crescimento de Londres. Sua população pula de 1 milhão de habitantes no início do século XIX para a marca de 2,3 milhões na metade do mesmo século. Do lado oposto do canal da Mancha, o mesmo se verifica com a cidade de Paris. Na data de 1806, contava com pouco mais de 600 mil habitantes, saltando para a cifra de 4 milhões nos albores do século XX (Cfr. MARCHAL, Hervé & STÉBÉ, Jean-Marc (org.), Traitè sur la ville, Presses Universitaires de France, Paris, 2009, pág. 91).

Do outro lado do oceano Atlântico, as cidades de Detroit, Chicago e New York, nos Estados Unidos, seguirão a mesma trilha da industrialização, migração e urbanização. Um pouco mais tarde, no que se refere ao oeste americano, a obra prima de John Steinbeck, The Grapes of Wrath (traduzida para o português como As vinhas da ira), ilustra bem esse processo. Publicada em 1939, e pela qual o autor merece o prêmio Nobel de literatura em 1962, retrata de forma magistral a saga da família Joad, a qual, juntamente com milhares de conterrâneos, vê-se obrigada a migrar dos campos de Oklahoma, transformados em fazendas de algodão, para a região da Califórnia em busca de trabalho e melhores condições de vida.

Retornando aos mesmos autores citados mais acima, no início do século XXI, ou de maneira mais precisa, em 2009, pela primeira vez em termos planetários, a população urbana supera a população rural. “A metade da população mundial é constituída de cidadãos urbanos: mais de 3 bilhões de seres humanos, sobre 6,6 bilhões, vivem na cidade” (Cfr, idem, pág, 91). Outros estudos confirmam essa passagem histórica: “Pouco mais de 55% dos 7,6 bilhões de habitantes do planeta vivem em áreas urbanas. Em 2050, serão 66%. Antes disso, em 2030, 41 megalópoles no mundo terão mais de 10 milhões de moradores.

No Brasil, os centros urbanos concentram 85% da população e chegarão a 90% em 2030. Esses indicadores mostram como as cidades estão submetidas à pressão da migração, com demandas cada vez mais intensas por infraestrutura, serviços, emprego e recursos naturais – em resumo, qualidade de vida. Há um consenso na maior parte dos países que, para atender às necessidades crescentes da população e preservar o planeta, as cidades terão de encontrar um novo modelo de desenvolvimento, ancorado na sustentabilidade, integrando aspectos sociais, econômicos e ambientais” (LAFETÁ, Raphael Rocha, in artigo Protagonistas da mudança, Revista Época, Ed. Globo, nº 1079).

Vista do bairro de Inácio Monteiro, em Cidade Tiradentes (extremo leste de São Paulo), a partir do prédio do CFCCT (Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes)
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo – set.2017

Conclui-se que a mobilidade humana, ontem como hoje, encontra-se numa encruzilhada que se estreita e se entrelaça com a luta pela preservação do meio ambiente e pela qualidade de vida a ser legada às gerações futuras. De um lado, ao longo dos séculos, a aglomeração maciça dos trabalhadores na zona urbana, devido à necessidade de braços para a indústria, levou a repensar os níveis de sustentabilidade em cidades como Londres, Paris, Turim Frankfurt, Milão, Detroit, Los Angeles, New York, Chicago… Mais tarde, a preocupação chega à Cidade do México, São Paulo, Buenos Aires, Santiago, Lima, Mumbai, Calcutá, Pequim, Shangai, Ho Chi Minh, Seul, Tóquio, Nairóbi, Argel e tantas outras. A diferença é que, enquanto as primeiras, localizadas nos países centrais, passaram por um processo de despoluição e desintoxicação, as segundas, situadas quase sempre em países periféricos, seguem com suas águas contaminadas e seu ar irrespirável, sujeitas a epidemias crônicas avassaladoras.

De outro lado, os chamados “desastres” naturais criam fluxos cada vez mais intensos do que se pode chamar “refugiados climáticos”. São os que escapam de estiagens prolongadas, furacões, inundações, tsunamis, terremotos, e catástrofes do gênero. Catástrofes que se agravam de ano para ano com o aquecimento global, a contaminação do ar e das águas e a desertificação do solo. No vórtice da tormenta, está o migrante, involuntária e simultaneamente causa e efeito de um planeta cada vez urbano, buliçoso e irrequieto. Ao atrair para a cidade a renda e o capital, a ciência e a tecnologia, as mercadorias e os consumidores, as mudanças por que atravessamos atraem também fluxos crescentes de trabalhadores e suas famílias. À medida que o globo terrestre se torna mais hostil e inóspito em determinados países e regiões, se torna também mais agressivo para seus habitantes; igualmente hostis, inóspitos e agressivos se tornam uma série de lugares particularmente vulneráveis a semelhantes “desastres”. A maioria deles são habitados por populações pobres e indefesas, primeiras vítimas de todo e qualquer distúrbio ambiental. Neste ponto, a causa ecológica e o uso correto dos recursos naturais cruza-se com a causa social na busca de melhores condições de vida e dignidade.

Disso resulta que não podemos pensar um desenvolvimento sustentável, sem debater, ao mesmo tempo, o tema das migrações. Quais as “forças ocultas” (para não dizer interesses obscuros) que levam milhões e milhões de pessoas a aglomerarem-se compulsoriamente em grandes centros urbanos, nas chamadas megalópoles, tentando encontrar trabalho, pão e paz? Como tomar em mãos e enfrentar as causas e implicações das assimetrias, das injustiças e dos desequilíbrios socioeconômicos que dividem povos, nações, continentes e mesmo regiões no interior de cada país? Nas palavras do Papa Francisco, como “passar de uma globalização da indiferença e de uma economia que mata, a uma cultura do encontro, do diálogo e da solidariedade”? Ou ainda, de acordo com os princípios da Carta Encíclica Laudato Si’, publicada em 2015, como redobrar os cuidados com a “nossa casa comum”? Sobra um gigantesco desafio: buscar o laborioso equilíbrio entre migração, urbanização e desenvolvimento sustentável, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista ecológico.

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