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quarta-feira, março 13, 2024

Por que devemos refletir sobre a existência de um perfil de migrante desejado?

Mesmo no Brasil, país entendido no imaginário social como acolhedor, quem migra ou se encontra em uma situação de refúgio é visto como o outro. E por trás disso residem representações que o marcam

Por Samira Frazão
Em Florianópolis (SC)

Os recentes acontecimentos envolvendo fluxos migratórios, seja na Europa e, mais recentemente, nos Estados Unidos, suscitam o debate em torno da existência, mesmo que indireta, de um perfil de migrante desejado. Por mais incompreensível que possa parecer, quais características são consideradas por governos para inserção e integração de pessoas que estão em mobilidade?

Não é de hoje que a questão é discutida por pesquisadores, a citar Lená Medeiros de Menezes e Giralda Seyferth. E continua relevante, uma vez que ainda na contemporaneidade ocorrem situações que envolvem o não acolhimento daqueles que outorgam um direito intrínseco a essência humana: a mobilidade.

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A existência de políticas migratórias discriminatórias e a aplicação de conceitos subjetivos para a aceitação de um migrante em determinada região são uma barreira. Mesmo no Brasil, país entendido no imaginário social como acolhedor, quem migra ou se encontra em uma situação de refúgio é visto como o outro. E por trás disso residem representações que o marcam, seja como vítima do Estado e de situações discriminatórias, alguém que só é visibilizado quando realiza ações consideradas heroicas, ou aquele que está a margem, propenso a práticas ilícitas.

Reprodução do vídeo no qual o malinês Mamadou Gassama salva criança pendurada em prédio em Paris.
Crédito: Reprodução

Quando são atribuídas à população migrante uma suspeita, em razão da incidência de possíveis doenças e práticas consideradas ilegais sob o ponto de vista da Justiça, deixa em cada um deles uma marca indelével. O rótulo de ser migrante pode ser, em determinados casos, um fardo de difícil convivência. Por exemplo, representantes da comunidade muçulmana, sob os quais recaem discursiva e midiaticamente representações ligadas ao “terrorismo”: a mesma suspeita e semântica acionadas não ocorrem quando o acontecimento envolve pessoas de outras nacionalidades e/ou de diferentes práticas ideológicas e religiosas. A citar o caso registrado na Noruega em julho de 2011, quando um atirador branco de origem europeia matou 69 pessoas. Discursivamente, ele foi considerado um “extremista” e “ultradireitista”, não um “terrorista”.

Ainda que haja um contradiscurso promovido, principalmente, por membros de organizações da sociedade civil, destacando a necessidade de refletir sobre o que é migrar e, em âmbito midiático, sobre os cuidados com o uso de palavras e representações estereotipadas, usos de termos como “ilegal” ainda são recorrentes. Ao atribuir tal denominação ao migrante, automaticamente recai sobre ele uma suspeita negativa.

#WordsMatter: Campanha da PICUM pede o fim do uso do termo “ilegal” em relação às migrações. Na imagem, é possível ver até o pedido em português da campanha.
Crédito: PICUM

E como essas questões se relacionam com a ideia inicial deste artigo? Ao analisar discursos midiáticos ou os que são reverberados na sociedade de longa data, determinados grupos formados por pessoas em mobilidade não se tornam tão suspeitos quanto outros. Pesquisadores como Vilna Bashi e Antonio McDaniel (1997) advogam da ideia que a questão está ligada a sistemas raciais, cujo objetivo é classificar os seres humanos e estabelecer políticas migratórias que privilegiam determinados perfis sociais. Essa classificação se baseia na cor e no fenótipo, e em como o migrante pode vir a se ajustar a um perfil considerado ideal.

Esses sistemas raciais impactam diretamente em como uma pessoa será inserida e integrada no lugar para onde migrou. Para Bashi e McDaniel (1997), a estratificação racial também vai manter, consequentemente, uma hierarquia social. Ou seja, a cor e o fenótipo se tornam marcadores da diferença em relação a quem é encarado como o outro, e irá influenciar práticas sociais para com ele.

Por exemplo, no caso do Brasil, durante as políticas migratórias vigentes entre os séculos XIX e XX, o migrante branco originário de países do Norte Global (SANTOS & MENESES, 2009) era considerado livre e industrioso e, por este motivo, apto para a colonização de terras e para a composição de uma sociedade brasileira idealizada. Além da cor, outros aspectos dessas pessoas eram valorizados, como a cultura, o conhecimento da agricultura e, esteticamente, o fenótipo.

Escultura no Museu da Imigração, em São Paulo. Migrar é um direito humano, que precisa ser reconhecido como tal, não importa a origem, crença ou motivo.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo – out.2014

Esse foi um dos pontos de análise da minha tese, intitulada “A suspeita que marca: o pânico moral na representação jornalística de imigrantes negros no Brasil contemporâneo (2000-2014)”. A partir da análise de reportagens sobre o considerado primeiro caso de suspeita de Ebola no Brasil, em outubro de 2014, associada a entrevistas realizadas com jornalistas e migrantes que aqui vivem desde os anos 2000, notei que discursivamente é comum encontrar no discurso midiático representações que associam o migrante negro à África e, nesse contexto, como potenciais portadores de doenças, como o Ebola. Também foi observado um desconhecimento sobre a África, quando representada no discurso midiático, e sua ligação com o Brasil. Esses equívocos promovem pânicos morais que, por sua vez, são relacionados a práticas sociais de caráter discriminatório, xenofóbico e racista contra essa parcela de migrantes.

Tanto no primeiro caso de suspeita de Ebola como em outros acontecimentos envolvendo pessoas em mobilidade que estejam sob alguma suspeita, dificilmente é possível perceber as histórias pregressas delas, o que eram e o que são. E o que isso implica? A ausência do protagonismo migrante nos discursos pode contribuir na promoção de um pânico moral na sociedade contra eles. O acontecimento em questão evidenciou a persistência de uma hierarquização racial no Brasil, mas que também está presente em outros lugares ao redor do mundo. E essa hierarquia igualmente jaz no imaginário social. Ainda que no senso comum tal questão não seja uma novidade, precisa ser refletida não apenas pela comunidade acadêmica, mas por todos.

* Samira Moratti Frazão é jornalista, doutora em História (PPGH/UDESC) especializada em mídia, migrações e questões raciais, e integrante do Observatório das Migrações de Santa Catarina.

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