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quinta-feira, março 28, 2024

Por um mundo com mais filoxenia em relação aos migrantes e refugiados

Por Bruna Kadletz
Publicado originalmente em Kosmos Journal

Disfarçados de pobres viajantes, Zeus e Hermes visitaram diversos vilarejos em busca de refúgio para a noite. Os deuses bateram em diversas portas. Sem saber a real identidade dos deuses, os residentes repetidamente os mandaram embora. Todos rejeitaram os “visitantes indesejados” com exceção de um casal de idosos – Baucis e Filemon. O humilde, mas nobre casal, recebeu os visitantes em sua casa e generosamente serviu bebida e comida para os agora convidados. Após preencher os copos de madeira diversas vezes, Baucis notou que a jarra de vinho estava sempre cheia. Filemon então descobriu que os convidados eram na verdade deuses e logo ofereceu a sacrificar seu único ganso para alimentar os deuses. Zeus recusou a oferta. Tocado pelo gesto, Zeus recompensou a generosidade e hospitalidade do casal ao transformar seu humilde casebre em um belíssimo templo de pedras. Zeus também prometeu realizar o último desejo do casal: ser os guardiões do templo, morrer ao mesmo tempo e permanecer juntos pela eternidade. Enquanto o casal se transformava em árvores, cada um guardando um lado da entrada do templo, suas raízes penetravam pelo solo e seus galhos se estendiam pelos céus.

A história de Baucis e Filemon aparece no livro Metamorfoses, uma coleção de mitos escrita pelo poeta romano Ovídio no ano 8 D.C. Essa bela história narra a relação sagrada entre visitantes e anfitriões, encarnando a antiga tradição grega conhecida como filoxenia. Apesar de filoxenia ser comumente traduzida como hospitalidade, essa tradução não reflete o significado profundo da tradição. A etimologia da palavra revela que filoxenia é uma expressão de amor e amizade para com estranhos.

Em nossos tempos, refugiados e imigrantes são a personificação coletiva da busca de Zeus e Hermes por refúgio. Reduzidos ao status de “visitantes indesejáveis e não convidados”, refugiados e imigrantes estão cada vez mais sendo subordinados a restrições políticas e legais, e a violência xenofóbica.

Essas restrições frequentemente impedem aqueles que escapam vivos de guerras ou buscam por melhores oportunidades de vida de obterem passagem segura e liberdade de movimento. Já a violência xenofóbica machuca o espírito humano, ferindo a dignidade de pessoas que, como nós, também possuem o direito de reconstruir suas vidas em uma nova terra.

No pós-Temer, pós-Brexit e pós-Trump, a retórica divisória do ódio amplifica sentimentos nacionalistas que enfraquecem e fragmentam sociedades. Assim, a imagem de refugiados e imigrantes como “visitantes indesejáveis” é fortalecida.

No começo de 2016, governos europeus fecharam suas fronteira e rotas migratórias, empregando força policial e poder militar para paralisar o movimento em massa das pessoas. Tais medidas aprisionaram milhares de refugiados e imigrantes em campos esquálidos, centros de detenções e favelas urbanas, onde sofrimento e falta de perspectiva corroem a esperança humana.

Olhando para o contexto brasileiro, apesar da emissão do visto humanitário, refugiados e imigrantes também vivenciam as amarguras e humilhações do status indesejável que lhes foi conferido. Agressões físicas e verbais, discriminações e comentários ofensivos fazem parte da realidade de muitos.

Diante de políticas punitivas que corrompem oportunidades igualitárias e narrativas que desumanizam, como podemos elevar os valores morais e éticos que sustentam nossa percepção de refugiados e imigrantes?

Os gregos nos ensinam uma lição valiosa.

Enquanto é verdade que a grande maioria dos países e sociedades tem sim fechado suas portas, redes de solidariedade e aceitação tem mantido vivo o antigo espírito da filoxenia.

Em julho de 2016, em uma viagem a Grécia, eu conheci a encarnação moderna do casal Baucis e Filemon. Os constantes fluxos de refugiados e imigrantes que atravessam o Mar Egeu tornaram as ilhas gregas na principal porta de entrada europeia para aqueles que sonham com segurança e direitos humanos em solo europeu. Como uma ponte de passagem, Lesvos, uma das ilhas que visitei, recebeu centenas de milhares de crianças, mulheres e homens assustados.

Na ilha grega, remanescentes de coletes salva-vidas, restos de botes e barcos e as cercas farpadas dos centros de detenções refletem a linha de pensamento que determinados grupos raciais e populações possuem menos valor intrínseco que outros. Tal noção tem permitido que autoridades políticas abandonem refugiados e imigrantes no Mar Mediterrâneo, deixando-os afogar sem tomar nenhuma medida para evitar mortes desnecessárias.

Somente em 2016, segundo o projeto Missing Migrants, mais de 4.700 migrantes perderam suas vidas na perigosa travessia do mediterrâneo.

Com a intensificação do sofrimento humano e na ausência de soluções sustentáveis, voluntários ao redor do mundo e residentes locais tem respondido de acordo com o princípio de amor e amizade para com estranhos.

Em Lesvos, eu me hospedei em uma pousada cujo os donos gregos também estavam hospedando uma família síria-palestina de 7 membros. Assim como Baucis e Filemon, o moderno casal grego demonstrou generosidade e cuidado para seus visitantes. O casal abraçou os membros da família como se fizessem parte da sua.

Como o casal descende de uma família de refugiados, eles também compreendem o sentimento de ser sistematicamente destituído e indesejado. Para eles, receber aqueles que buscam refúgio é a resposta mais natural. Por causa da crise dos refugiados de 2015, o turismo na ilha reduziu, enfraquecendo a economia da ilha. Ainda assim, apesar das dificuldades econômicas, o casal abriu as portas da sua casa para os estranhos que batiam na sua porta.

Em um mundo em transição, onde refugiados e imigrantes são estigmatizados como ameaças a ordem social e segurança social, os Gregos nos demonstram que é possível manter um coração aberto para visitantes, mesmo sob circunstancias desafiantes.

Muitos voluntários e residentes locais mantém vivo o espírito da filoxenia. Eles ensinam ao mundo uma valiosa lição: quando nos vemos no “outro”, nós podemos sustentar coração aberto e atitude inclusiva, expressando amor e amizade para com estranhos. Ao descobrimos esse elo de conexão, reconhecemos nossa humanidade compartilhada.

Em sociedades construídas com os valores corrosivos do individualismo, interesse próprio e competição, o medo tende a bloquear ações de solidariedade e cuidado com relação ao “outro”. Ao permitir que esses valores moldem nossos relacionamentos, nós nos fechamos em bolhas.

O mito de Baucis e Filemon fala sobre hospitalidade e a transformação que ocorre quando recebemos bem visitantes inesperados. Em um nível externo, a hospitalidade representa o abrir das portas para aqueles que necessitam. Em um nível simbólico, a hospitalidade representa o abrir das portas para generosidade, amizade, empatia e amor.

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