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sexta-feira, abril 19, 2024

Refúgio e gênero: precisamos falar sobre mulheres refugiadas

Falar da mulher refugiada é falar de desigualdades profundas

Por Giovanna Vial e Gabriela Pereira
Do ProMigra

No mês em que se comemora o dia das mulheres internacionalmente, é necessário lançar um olhar cuidadoso para um grupo seleto de mulheres de que pouco se fala: mulheres refugiadas. 

A relevância de mulheres dentro dos fluxos migratórios tem expandido ao longo das últimas cinco décadas, simultaneamente à sua invisibilidade. Atualmente, as mulheres compõem metade da população migrante, e são a maioria entre imigrantes na América, Europa e Oceania.

Maria José Magliano explica que os processos de mobilidade humana são marcados pelas relações de gênero, isto é, as relações sociais de sexo são elementos estruturantes do fenômeno migratório, influindo concomitantemente com outros pontos como a classe social e etnia: 

“A subordinação em termos de gênero, classe social e etnia constituem o marco referencial para qualquer análise dos processos que produzem e reproduzem formas de marginalização e exclusão das mulheres migrantes”.

Interseccionalidade

Já nos anos de 1990, a advogada, ativista e pesquisadora Kimberlé Crenshaw aponta a mulher imigrante como exemplo de interseccionalidade (1).  Submetidas a uma sobreposição de opressões e privações, as refugiadas acumulam ainda mais desvantagens em relação às mulheres imigrantes: o fato de estarem fugindo de conflitos e ameaças à sua integridade por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, muitas vezes sem saber do paradeiro do restante de sua família e levando seus filhos nos braços ao cruzar fronteiras em situações precárias.

Sua cor da pele, religião, nacionalidade, classe social, sem falar das perdas materiais e afetivas inerentes à condição do refúgio, são fatores que, somados à questão de gênero, tornam a mulher refugiada um dos indivíduos mais vulneráveis da atualidade (2).

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) constatou que refugiados e solicitantes de refúgio são frequentemente obrigados a fazer uso de contrabandistas e outras medidas de risco para atravessar fronteiras internacionais, fugindo de perseguições e conflitos. As condições de saída, trânsito e recepção de refugiados nos países de destino são moldadas pelo crime organizado e oportunista (3), o que, somado aos perigos inerentes às passagens de fronteira, pode resultar em sua exploração, abuso e tráfico. Nesse contexto, o ACNUR relatou, ainda, que mulheres e meninas, especialmente aquelas viajando por conta própria, estão particularmente expostos a riscos de violência sexual e de gênero.

Perigos imediatos e outros riscos

Em uma entrevista realizada pela Anistia Internacional em 2016 com 40 mulheres refugiadas da Síria e do Iraque, a organização constatou que ao deixar seu país, muitas dessas mulheres são frequentemente coagidas a trocarem relações sexuais por favores ou por bens como roupas e comida, quando de sua passagem por assentamentos e acampamentos temporários.

Entre as refugiadas sírias, as formas mais relatadas de violência contra mulheres e meninas incluem agressão física, violência doméstica e sexual, negação de recursos e casamento forçado e infantil. As mulheres refugiadas sírias relatam ser forçadas a recorrer ao trabalho sexual para cobrir as necessidades básicas de suas famílias.

Assim, mesmo quando refugiadas escapam dos perigos imediatos do conflito armado e de situações de violações generalizadas de direitos humanos, sua susceptibilidade à violência, abuso e exploração permanece e aumenta à medida que seu deslocamento se prolonga.

Entre outras razões, isso ocorre devido à separação familiar a longo prazo, quebra das estruturas comunitárias existentes antes da conflito, perda de ativos financeiros e sociais, ou moradias superlotadas sem privacidade. Em especial no contexto do refúgio, o assédio sexual é a manifestação de uma cultura de discriminação e de privilégios baseada em relações desiguais de gênero.

A realidade das mulheres nos campos de refugiados não é diferente. No Líbano, as mulheres dos campos apresentam, por meio de suas narrativas, vidas moldadas pela violência estrutural, à medida que abusos cotidianos são incorporados à estrutura social. Os campos se revelam como lugares de não-pertencimento e evidenciam como a noção de ‘’lar’’, na perspectiva das mulheres refugiadas, pode associar-se às noções de segurança e terror de maneira concomitante (4).

Influência de políticas estatais

Pesquisadores da Faculdade de Direito da Queen Mary University of London afirmam que as vulnerabilidades a que estão sujeitas as mulheres refugiadas são em grande parte  construídas ou induzidas pelas práticas e políticas estatais. Ao negar ou limitar o acesso e o gozo aos direitos fundamentais por essas mulheres, os Estados criam circunstâncias propícias para que atores não estatais tirem proveito de suas carências, violentando-as oportunisticamente (5).

Um exemplo atual da influência direta de políticas estatais na vulnerabilização de mulheres refugiadas acontece atualmente na fronteira entre o México e os Estados Unidos. Os mecanismos institucionais que dificultam a obtenção do status de refugiado somados à abstenção, por parte do governo norte-americano, em disponibilizar um ambiente seguro para que as solicitantes de refúgio possam aguardar o resultado de seu pedido, possibilitam formas de violência sexual e de gênero que muitas vezes passam despercebidas, sem controle e sem punição (6).

Em julho de 2018, o jornal The New York Times revelou dois casos de mulheres vítimas de estupro nos centros de detenção de imigrantes criados pelo governo dos Estados Unidos. Uma das vítimas tinha somente 19 anos e estava com seu filho de 3 anos em um dos centros de detenção na Pensilvânia, quando foi violentada sexualmente por um dos guardas.

Outro exemplo nítido se dá na República Democrática do Congo (RDC), onde o abuso sexual de mulheres é utilizado como estratégia de milícias e do próprio Exército congolês, fato que gera milhares de casos de refúgio de mulheres nos países vizinhos, onde muitas vezes não encontram segurança e seguem sendo abusadas. 

Segundo um estudo da American Journal of Public Health, divulgado pela BBC, 48 mulheres são estupradas por hora na RDC. A impunidade frente à violência sexual é nítida e só alimenta mais injustiças em todo o continente africano. Vários especialistas atribuem a crise de violência sexual do país a um conflito de longa data no leste do Congo, onde grupos rebeldes rivais usam o estupro coletivo e a escravidão sexual como armas de guerra.

Inclusão na pauta feminista

Falar da mulher refugiada, portanto, é falar de desigualdades profundas. A subjugação e violação de direitos dessas mulheres são resultado das interações – que, como vistas até aqui, podem ser cruéis – entre o sexismo, o racismo, e outras variantes discriminatórias e degradantes. Daí a necessidade de contemplá-las no escopo do discurso feminista, de pensar e discutir suas experiências de vida e necessidades, já que os temas de suas agendas políticas diferem essencialmente dos de outras mulheres.

No mês em que comemoramos internacionalmente o dia das mulheres,  é preciso enfatizar a necessidade da implementação, seguindo as diretrizes do ACNUR,  da prevenção e resposta à violência sexual e de gênero, do registro e documentação individuais, da criação de condições seguras de alojamento e acolhida, e do empoderamento econômico de mulheres imigrantes.

Só assim poderemos falar das mulheres refugiadas como sujeitos de direito, e não mais como sobreviventes de estruturas patriarcais e instituições estatais que, em nome de sua soberania, aprofundam desigualdades e vulnerabilidades à medida que dificultam seu assentamento seguro e sua legalização.

Notas

1 – CRENSHAW, K. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, 1991, 43(6), pp. 1241-1299;

2 –  VALJI, N;  DE LA HUNT, L; MOFFETT, H. Where Are the Women? Gender Discrimination in Refugee Policies and Practice. Agenda: Empowering Women for Gender Equity No. 55, Women. The Invisible Refugees (2003), pp. 61-72;

3 –  SHARON, P.  Women, Borders and Violence: Current Issues in Asylum, Forced Migration and Trafficking. Springer New York, 2011, p. 17;

4 –  HOLT, M. Women & Conflict In the Middle East: Palestinian Refugees and the Response to Violence. I.B. Tauris New York, 2014, p. 51-83;

5 –  ATAK, I; Nakache, D; Guild, E; Crépeau, F. “Migrants in vulnerable situations” and the Global Compact for Safe Orderly and Regular Migration. Queen Mary University of London, School of Law. Legal Studies Research Paper No. 273/2018, p. 20;

6 –  PICKETING, S. Women, Borders and Violence: Current Issues in Asylum, Forced Migration and Trafficking. Springer New York, 2011, p. 111;

As autoras

Gabriela Cotta Pereira é graduanda em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente trabalha com migração laboral na BR Visa Migration Solutions, desenvolve pesquisa científica no escopo de refugiados advindos da República Democrática do Congo (RDC) e a exclusão social na cidade de São Paulo. É integrante do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP (FDUSP).

Giovanna Martins Vial é graduanda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e integrante do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP. Estagiou junto ao 1º Ofício de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em São Paulo e atualmente realiza intercâmbio acadêmico junto à Universidade de Lucerne, na Suíça.


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