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quinta-feira, março 14, 2024

Solidariedade e consciência coletiva: experiências de imigrantes e refugiados na pandemia de covid-19

Imigrantes e refugiados têm protagonizado ações inspiradoras em meio a uma situação extremamente difícil para toda a população brasileira devido ao coronavírus

Por Patrícia Nabuco Martuscelli*

Dizem que, em momentos de crise, o ser humano revela aquilo que ele tem de melhor e de pior. Enquanto assistimos exemplos do que poderia ser classificado como mais reprovável da humanidade na atual pandemia do novo coronavírus (covid-19) como pessoas esvaziando prateleiras nos supermercados, líderes confiscando equipamentos de proteção individual de outras nações e empresários que não se importam com a vida de uma parte da sociedade, o momento atual também nos brinda com exemplos de solidariedade, amor ao próximo e esperança na raça humana.

Nos últimos dias, imigrantes e refugiados têm protagonizado essa onda inspiradora em meio a uma situação extremamente difícil para toda a população brasileira.

Ao longo da minha pesquisa que entrevistou 34 imigrantes e refugiados em 10 dias, observei exemplos de solidariedade e consciência coletiva mesmo daquela parte da população que é afetada desproporcionalmente pela epidemia por estar longe de suas famílias e redes de proteção.

Ações de solidariedade

Conversei com pessoas que estavam em situações realmente difíceis: impossibilitadas de trabalharem por causa das medidas de distanciamento social ou até desempregadas que mesmo em condições em que a busca pela sobrevivência “justificaria” ações mais egoístas estavam pensando em como ser úteis e contribuir com outras pessoas que estavam em uma situação ainda mais complicada.

Um caso interessante foi o de uma família síria que trabalha com gastronomia e foi afetada pelo cancelamento de eventos. Ainda assim, eles distribuíram 300 marmitas para idosos brasileiros como uma forma de retribuir para o país e fazer sua parte. 

Além desse, também conversei com um senegalês que, apesar de estar desemprego e não ter com quem contar no Brasil, estava chefiando ações para oferecer alimentos e apoio para a população de rua. Essa pessoa, que poderia ficar em casa como forma de se proteger do vírus, decidiu fazer aquilo que estava ao seu alcance para ajudar o seu próximo que estava em uma situação mais difícil do que a dele.

Também outros imigrantes sírios e congoleses estavam contribuindo com seus vizinhos idosos fazendo compras de supermercado para evitar que essas pessoas do grupo de risco tivessem que sair de casa. Também ouvi exemplos de famílias imigrantes e refugiadas que estavam desempregadas e sobrevivendo com cestas básicas doadas, mas que dividiam o pouco que tinham com vizinhos brasileiros que também estavam passando por necessidades.

Outros refugiados venezuelanos me explicaram que, por causa da situação na Venezuela, estavam acostumados a ficar em casa, racionar comida e se reinventarem para sobreviver. Esses estavam compartilhando essas experiências e auxiliando outros brasileiros e demais nacionais a se reinventarem em meio a essa crise que parou mais de um terço do planeta.

Além de outros exemplos do tipo Brasil afora, teve ainda a entrega de cestas básicas e kits de higiene promovida pela ONG África do Coração, fundada e composta por imigrantes e refugiados. A ação atendeu 55 famílias de imigrantes em situação vulnerável no centro de São Paulo no último sábado (11).

Entrega de doações de cestas básicas e kits de higiene em São Paulo pela África do Coração, ONG formada por imigrantes e refugiados
Entrega de doações de cestas básicas e kits de higiene em São Paulo pela África do Coração, ONG formada por imigrantes e refugiados.
(Foto: Divulgação/África do Coração)

Consciência coletiva

Além de exemplos concretos de solidariedade, amor ao próximo e retribuição aos brasileiras pela acolhida recebida no país, impressiona a consciência coletiva dos entrevistados. Como já explicado no primeiro texto desta série, imigrantes e refugiados são mais afetados do que a população brasileira pelos efeitos do covid-19 por estarem sem suas famílias, terem incertezas sobre acesso a direitos e benefícios, terem tido seus processos documentais parados e estarem preocupados com suas famílias em países de origem afetados por conflitos armados, crises e sem recursos para lidar com a pandemia.

Nessa linha, minha pesquisa continha uma pergunta que tinha o objetivo de chamar atenção para imigrantes e refugiados como um grupo minoritário (não-nacionais no Brasil). A pergunta era: Como você acha que o governo brasileiro poderia ajudar os imigrantes e refugiados nesse momento de coronavírus? 

Esperando que essa questão levasse a reflexões mais individualistas considerando os próprios desafios que cada um dos entrevistados estava enfrentando por causa das medidas para lidar com essa doença, tive uma surpresa que restaurou um pouco minha fé na humanidade.

A maior parte dos entrevistados reconhecia que o governo brasileiro deveria ajudar todas as pessoas afetadas pela pandemia, independentemente de nacionalidade, raça, classe social, sexo, idade, status documental, o que incluía necessariamente ajudar também os brasileiros. Algumas pessoas chegaram a refletir que até as pessoas ricas brasileiras poderiam estar passando por dificuldades, o que demandava maior atenção do governo.

Os entrevistados sugeriram que o governo adotasse uma renda básica para toda a população, que oferecesse apoio psicológico, que distribuísse cestas básicas para os mais necessitados e kits de higiene para aqueles que não podem comprar máscaras, luvas, álcool em gel. Os entrevistados, ainda que relatassem situações bem difíceis, também tinham a consciência coletiva de reconhecer grupos mais vulneráveis (em sua opinião) do que eles mesmos tais como pessoas em situação de rua, recém-chegados no Brasil, pessoas morando em albergues e ocupações e famílias brasileiras que já estavam passando por necessidades antes mesmo da crise do coronavírus que deveriam receber ainda mais atenção do governo. 

Aprendizados

A reflexão geral era que o coronavírus afetava todas as pessoas, por isso seria importante lidar com união nesse momento e ajudar a todos, sem deixar ninguém para trás. Outro ponto que reforça esse tema da consciência coletiva é como os entrevistados estavam lidando com as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde para conter o contágio.

A maior parte dos meus entrevistados estava desempregada, era de autônomos ou de pessoas que tinham pequenos negócios, ou seja, todos foram severamente afetados pelas recomendações de ficar em casa e manter o distanciamento social. Ainda assim, todos os entrevistados reconheceram a importância dessas medidas para proteger não apenas eles mesmos, mas também outras pessoas.

Houve um consenso de que a vida é importante e que todas as vidas devem ser preservadas ao máximo. Além disso, os entrevistados reafirmaram a importância de que todas as pessoas levem à sério a doença e fiquem em casa como medida de prevenção. Para eles, se todos levarem o distanciamento social a sério, o sistema de saúde poderá lidar com a doença e cuidar daqueles que têm maior necessidade. Respeitar as recomendações de saúde, higiene e de ficar em casa também contribuiria para que o período de distanciamento social fosse o mais breve possível, permitindo que todos voltassem a suas vidas e atividades assim que possível. 

Em um mundo cada vez mais marcado por divisões entre “nós” e “eles”, experiências de amor, solidariedade e união em meio a uma crise servem para nos inspirar de que é possível uma sociedade mais justa e que devemos ter fé na humanidade. É fundamental que possamos aprender com experiências de solidariedade e consciência coletiva de todas as pessoas e de diversas partes do mundo, incluindo de imigrantes e refugiados no Brasil.

Patrícia Nabuco Martuscelli é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo


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