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segunda-feira, abril 15, 2024

Uma reflexão a partir de Mamadou Gassama – e das trajetórias de outros migrantes

Caso do malinês transformado em herói na França levanta reflexões sobre os desafios que outros migrantes como ele vivem na tentativa de chegar à Europa – e depois que já estão nela

Por Maria Dantas*
De Barcelona (Catalunha/Espanha)

O Mamadou Gassama é uma das 62.219 pessoas refugiadas que chegaram à Europa pelo Mar Mediterrâneo em 2017, das quais 1.689 estão mortas ou desaparecidas, de acordo com a OIM (Organização Internacional para as Migrações).

O Mamadou fugiu do Mali, um país que sofre uma guerra civil há 6 anos e tem constantes ataques violentos de grupos armados.

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O Mamadou, fugindo, procurando refúgio, passou por Burkina Faso, país vizinho onde há 53.512 pessoas no campo de refugiados de Mberra e que somente nas últimas semanas, cerca de 3.000 pessoas fugiram para lá, de acordo com o ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados).

O Mamadou queria ir à Europa, encontrar refúgio, continuando a sua viagem passou também por Níger, outro país vizinho, onde as pessoas migrantes e refugiadas morrem de sede no deserto, são quase todas subsaarianas ansiosas por chegar à Europa, expulsas e extorquidas pelas máfias, que as deixam na estrada, no meio do nada, perdidas e sendo engolidas pela areia quente do Saara.

O Mamadou queria chegar à Europa dos sonhos, mas tinha que passar pela Líbia, o país inferno para as pessoas refugiadas, e pior ainda depois que a União Europeia fez um pacto com a Turquia para acabar com o trânsito do refúgio em 2016 e conseguiu deslocar o caminho para a perigosa rota do Mediterrâneo central; rota na qual morreram e desapareceram 15.000 pessoas nos últimos 4 anos, segundo a organização Médicos Sem Fronteiras.

Na Líbia, as máfias tatuam números na pele das pessoas refugiadas, são escravas. As pessoas que querem embarcar da Líbia para a Itália passam por situações terríveis nas mãos das máfias. Quando são encontradas no mar, passam por torturas, abusos, sequestros, são vendidas nas praças públicas como escravas, e quase todas as mulheres que passaram pelo país, com destino à Europa, relatam ter sido estupradas.

Charge compara o ato de Mamadou em Paris com o de milhares de outros migrantes como ele, ao tentar chegar à União Europeia.
Crédito: Reprodução

O Mamadou continuou a sua viagem, da Líbia foi para a Itália num barco, que seguramente triplicava o número normal de pessoas à bordo, e que foi perseguido pela Guarda Costeira da Líbia. Ele não sabe, mas a prioridade da Itália e de toda a União Europeia não é resgatá-lo, senão interceptar o seu barco e devolver todas as pessoas refugiadas à Líbia novamente, e para tal, utilizam a força dos barcos da Guarda Líbia para impedir, em pleno mar, a viagem das refugiadas. O Mamadou tampouco sabe que quando a Guarda Costeira Líbia encontra um barco de refugiadas à deriva, aproxima-se e exige que subam à bordo do seu navio, muitas vezes batem nas pessoas refugiadas com as grossas cordas do navio, jogam as refugiadas escada abaixo quando estão tentando subir à bordo (foi tudo gravado por uma ONG).

O Mamadou nem imagina que a União Europeia externaliza a sua política migratória e paga à Líbia e ao Marrocos para que façam esse trabalho sujo, para que ponham freio à entrada de pessoas refugiadas na Europa. A hipocrisia colonial sempre quis “tomar as rédeas” para “salvar” a África dos males que eles mesmos, os europeus, criaram. Neste sentido, nos últimos anos, a França interveio na Costa do Marfim, na República Centro-Africana, no Chade, no Djibuti, na Líbia, no Sudão, na Tunísia, no Egito e no Mali, este último, o país onde nasceu o Mamadou.

O Mamadou conseguiu chegar à França e foi à Paris dos seus sonhos, mas caminhando pela cidade topou com a “calçada da vergonha”: vários campos improvisados de pessoas refugiadas, na calçada, bem na frente da France Terre, umas das ONG que gerencia a acolhida de refugiadas (PADA). Centenas de pessoas da Somália, Eritreia, Etiópia, Sudão, Guiné, Chade, Burkina Faso, Líbia, Mali … dormindo no chão, ao relento, durante muitos dias, até poder entrar no local para ter algum tipo de ajuda.

O Mamadou não sabe que pode ser preso e deportado na União Europeia e pensa “Eu não sou um criminoso, não vão me tratar mal nem me prender!”, mas o que ele pode esperar de um dos principais países responsáveis pelos bombardeios na Síria, no Iêmen e em tantas outras regiões? O que ele pode esperar de um Estado que fumiga campos de refugiados (Calais), denega milhares de petições de asilo e proteção internacional nas suas fronteiras terrestres, que deixa crianças e grávidas refugiadas ao relento, que tem uma das políticas migratórias mais restritas da Europa?

O Mamadou e todas as pessoas migrantes são heróis e heroínas por manter-se vivos após uma longa e terrível viagem, pulando cercas de 8 metros com arame farpado, cabos elétricos, mordidas de cães, cassetetes de policiais, prisões frias e sujas, sem ter papéis de residência ou nacionalidade, sofrendo violências físicas e psicológicas, privações de todo tipo e violações de direitos básicos, que sofrem diariamente na Europa. São heróis e heroínas, obrigados a ganhar a vida clandestinamente como vendedores ambulantes, empregadas domésticas, pedreiros, peões, babás, … que tentam sobreviver nessa Europa onde cada dia cresce ranço racista, xenófobo e fascista.

O Mamadou Gassama não precisa de que um senhor branco europeu lhe conceda uma medalha de herói por ter salvo uma criança. Ele já era um herói.

Hipocrisia

A França acaba de aprovar uma das mais rígidas leis dos últimos anos.

A nova lei de asilo e imigração do Executivo de Emmanuel Macron é um texto que certamente complicará a vida das pessoas refugiadas que procuram asilo, uma lei que endurece, ainda mais, a atual política migratória francesa.

O novo texto legal traz novidades desumanizantes, como por exemplo aumentar de 45 a 90 dias o período de prisão de imigrantes nos Centros Administrativos de Detenção (CRA), inclusive há a possibilidade de que crianças também sejam privadas de liberdade; reduzir de 120 para 90 dias o prazo para apresentar o pedido de asilo; reduzir de onze para seis meses o período de instrução e recurso dos processos, com o objetivo de acelerar a expulsão dos imigrantes; reforçar o “crime de solidariedade”, que julgará e multará à cidadania que ajude as pessoas imigrantes e/ou refugiadas; aumentar de 16 para 24 horas o período de retenção administrativa para verificar se uma pessoa tem uma autorização de residência na França; e outras mumunhas mais.

Ninguém é ilegal!

P.S.: o nome do Mamadou Gassama foi repetido diversas vezes no texto a propósito, porque a mídia em geral não o fez.

Maria Dantas é jurista e ativista social pelos direitos humanos. Vive em Barcelona. O texto foi publicado originalmente em seu blog pessoal – acesse aqui

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